Termo inicial dos juros de mora e correção monetária sobre multa civil por improbidade administrativa: comentários ao tema 1.128 do stj – Por Mariana Fernandes Beliqui e Ricardo Muniz Trentin na Revista dos Tribunais

Revista dos Tribunais | vol. 1077/2025 | p. 361 – 373 | Jul / 2025

DTR\2025\7937

Mariana Fernandes Beliqui – Mestre em Direito Processual pela UFES. Especialista em Direito Administrativo pela PUC-MG. Advogada. mariana@cjar.com.br

Ricardo Muniz Trentin – Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil pelo IBMEC/SP. Especialista em Direito Marítimo e Portuário pela Maritime Law Academy – MLAW. Advogado. ricardo@cjar.com.br

Área do Direito: Civil; Administrativo

Resumo: O presente artigo propõe uma análise crítica ao entendimento recentemente fixado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial representativo de controvérsia 1.942.196/PR, julgado sob o rito dos recursos especiais repetitivos (Tema 1.128), no qual a corte fixou o entendimento de que o termo inicial da incidência de correção monetária e juros de mora da multa civil prevista na Lei 8.429/1992 é a data do ato ímprobo. Sustenta-se que tal posicionamento caracteriza uma indevida equiparação entre sanção político-administrativa e obrigação reparatória civil, desconsiderando a natureza punitiva da multa civil no âmbito do direito administrativo sancionador. Defende-se, com base na doutrina especializada e nos princípios constitucionais, que o termo inicial adequado deve ser o trânsito em julgado da sentença condenatória que fixa a sanção e/ou da prolação da sentença condenatória.

Palavras-chave: Improbidade administrativa – direito administrativo sancionador – multa civil – correção monetária – juros de mora – ressarcimento ao Erário.

Para citar este artigo: STJ – REsp 1.942.196/PR. Comentário por Mariana Fernandes Beliqui e Ricardo Muniz Trentin. Revista dos Tribunais. vol. 1077. ano 114. p. 361-373. São Paulo: Ed. RT, julho 2025. Disponível em: [URL]. Acesso em: DD.MM.AAAA.

COMENTÁRIO DE JURISPRUDÊNCIA: Acesse a jurisprudência referente a este comentário

(JRP\2025\643400).

Sumário:

1 O caso e a tese fixada – 2 A natureza jurídica da multa civil por ato de improbidade administrativa e sua distinção quanto ao ressarcimento do dano ao erário – 3 O termo inicial dos juros de mora e correção monetária adotado pelo STJ, suas razões e incongruências – 4 Sanção estatal com reflexos patrimoniais retroativos: antecipação de penalidade? – 5 Conclusão – 6 Referências bibliográficas

1 O caso e a tese fixada

A 1a Seção do STJ, sob o rito dos recursos especiais repetitivos (REsp 1.942.196/PR – Tema 1.128), fixou a seguinte tese: “na multa civil prevista na Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), a correção monetária e os juros de mora devem incidir a partir da data do ato ímprobo, nos termos das Súmulas 43 e 54/STJ”.

Com o julgamento, o colegiado resolveu, ao menos por ora, importante controvérsia existente sobre o termo inicial a partir do qual há incidência de juros de mora e correção monetária sobre a multa civil prevista no art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19) como sanção por ato de improbidade administrativa.

A controvérsia, mais especificamente, consistia em estabelecer se a atualização monetária desta sanção civil – a multa – deveria incidir a partir do trânsito em julgado da sentença que fixa a condenação, da data da prática do ato ímprobo sancionado, ou outro marco processual.

Ainda que respaldado em orientações sumulares oriundas da própria Corte sobre o tema da responsabilidade civil extracontratual, Súmulas 43/STJ e 54/STJ, a tese fixada motiva respeitosas críticas e até mesmo a necessidade de se rever o entendimento, sobretudo por comprometer a distinção conceitual entre as categorias jurídicas de sanção administrativa e obrigação reparatória de natureza civil, além de vincular e dar tratamento jurídico idêntico a institutos que possuem natureza jurídica e finalidade distintas.

A decisão, embora fundamentada no paralelo com a responsabilidade civil extracontratual, salvo melhor juízo, incorre em um equívoco estrutural: embaraça a natureza sancionatória da multa civil com a natureza reparatória da obrigação de ressarcimento ao erário.

Dessa forma, à luz da natureza jurídica da obrigação de ressarcimento ao Erário e da multa civil prevista na Lei de Improbidade Administrativa, é possível identificar algumas controvérsias conceituais e dificuldades dogmáticas no entendimento firmado pela Corte Cidadã, os quais têm gerado relevantes debates doutrinários e sinalizam a conveniência de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema.

2 A natureza jurídica da multa civil por ato de improbidade administrativa e sua distinção quanto ao ressarcimento do dano ao erário

Para que se possa entender o embaralhamento de premissas e institutos jurídicos da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19) na tese fixada pelo STJ, é necessário que se tenha como ponto de partida os conceitos doutrinários relativos à multa civil prevista no art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, e ao dever de ressarcimento integral do dano ao erário.

A multa civil prevista no art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19) constitui uma sanção administrativa imposta pelo Estado como resposta à prática de ato ímprobo. Como enfatiza a doutrina, as multas impostas pelo Estado, em geral, são sanções do tipo pecuniário que atingem o patrimônio do transgressor de uma norma jurídica, a título de dano presumido da infração, ou de cunho meramente punitivo1.

Em se tratando especificamente da multa civil prevista na Lei de Improbidade, diversamente do ressarcimento integral do dano ao erário, ela não tem natureza compensatória ou indenizatória, mas, claramente, natureza punitiva2, inclusive reconhecida em diversas ocasiões pelo próprio STJ3, e a obrigatoriedade de seu pagamento decorre da afronta ao princípio da moralidade administrativa ou da probidade administrativa4.

Com efeito, a multa tem como principal função desestimular a prática de atos de improbidade, como forma de lição a todos de que, além das demais penas, tal espécie de ato terá repercussão no patrimônio do agente público pela condenação ao pagamento de determinada importância pecuniária 5, buscando reprimir e dissuadir a prática de atos lesivos à Administração Pública.

A sanção de multa civil, ainda que patrimonial, surge como manifestação do poder sancionador do Estado, voltado a punir a conduta ímproba apurada mediante o devido processo legal em que se assegure o contraditório efetivo.

Modernamente, pode se dizer que ela está abarcada pelos princípios e regras afetas ao direito administrativo sancionador, tal como todo o sistema da improbidade administrativa, agora por expressa previsão legal no § 4o do art. 1o, da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), inserido pela Lei 14.230/2021 (LGL\2021\14476).

Por essa razão, é importante compreender que a multa civil não nasce automaticamente com a prática do ato ímprobo, como parece entender o STJ ao fixar a tese aqui analisada. Sua aplicação ao agente público depende de decisão judicial proferida ao final do devido processo legal com necessário contraditório e após exercício adequado da dosimetria das penas6.

Lição clássica da literatura é a de que a imposição de sanção administrativa pressupõe o respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, sem os quais a sanção não pode produzir efeitos jurídicos válidos7.

Em sentido diverso da multa civil, a obrigação de ressarcimento dos danos ao erário não se trata de sanção administrativa, mas de cominação de natureza indenizatória8, isto é, uma obrigação geral e pré-existente, afeta ao regime jurídico-administrativo, que tem como escopo recompor os danos sofridos pela pessoa jurídica de direito público em seu patrimônio, por ato praticado pelo agente público9.

Na doutrina, afirma-se, faz muito, que não há sanções ressarcitórias. Para o dano a resposta é a indenização, para o ilícito, a sanção10. Conceitos autônomos e segregados.

E por não ter natureza punitiva, e sim indenizatória, a obrigação de ressarcimento integral dos danos ao erário pode ser aplicada independentemente da caracterização de ato de improbidade administrativa, bastando que haja prejuízo ao erário decorrente de ato lesivo ao patrimônio público, e pode ser buscada por meio de ações coletivas diversas da ação de improbidade administrativa11.

Isso não ocorre com a multa civil, que, por se tratar de ato punitivo estatal, depende necessariamente da efetiva caracterização e condenação judicial do agente por ato de improbidade administrativa para que possa ser fixada.

Portanto, a natureza jurídica da multa civil prevista no art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19) tem origem e finalidade completamente distintas da obrigação de ressarcimento ao Erário, de modo que a sanção não possui vinculação direta, quanto à sua razão de existir, aos danos efetivamente suportados pelo erário, pois para sua aplicação o dano é prescindível, conforme prescreve o caput do art. 12 da Lei de Improbidade.

Por essa e outras razões é que ousamos discordar do posicionamento que tenta dar à multa punitiva um tratamento similar a uma obrigação reparatória ou indenizatória, sobretudo quanto aos efeitos patrimoniais.

A diferença ontológica entre sanção e reparação civil é a pedra angular a partir da qual é possível atingir a conclusão de que a fixação de termo inicial idêntico para incidência de atualização monetária (juros de mora e correção) sobre as referidas rubricas não é adequada.

Percebe-se, assim, que a distinção entre sanção punitiva e obrigação reparatória não é meramente acadêmica ou conceitual. Sua correta classificação repercute diretamente no regime jurídico que informa sua aplicação, em especial, quanto aos efeitos patrimoniais dessa sanção estatal, que, inclusive, é aplicada simultaneamente ao dever de ressarcimento dos danos ao erário.

3 O termo inicial dos juros de mora e correção monetária adotado pelo STJ, suas razões e incongruências

Fixadas as premissas que distinguem a multa civil e o dever de ressarcimento ao erário, é possível compreender que os efeitos jurídicos patrimoniais dessas rubricas não são, e não podem ser, idênticos.

A multa civil – e sua eficácia – não preexiste ao ato ímprobo, sendo constituída pela sentença condenatória, que materializa a imposição da sanção.

Nesse sentido, o § 9o do art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), inserido pela Lei 14.230/2021 (LGL\2021\14476), sustenta a interpretação de que a eficácia das sanções administrativas impostas por meio de ação de improbidade administrativa é ex nunc, produzindo efeitos apenas a partir de sua constituição definitiva pelo Poder Judiciário, em sentença condenatória transitada em julgado, tal como ocorre com a aplicação de sanções penais por crimes no direito penal12, em que não se admite a execução provisória da pena, como regra13.

Por conseguinte, não há mora do condenado antes de constituída a multa pelo trânsito em julgado da sentença, momento em que surge a eficácia e exigibilidade da sanção pecuniária, tal como prescrito no próprio texto legal.

Quanto à correção monetária, por se tratar de sanção punitiva e não indenizatória, o valor da multa civil somente será corrigido a partir da sua fixação na sentença ou no acórdão que a fixar.

Com efeito, aplicar juros e correção monetária sobre a multa civil – fixada pela sentença definitiva – desde a data do ato ímprobo transforma a multa civil em dívida preexistente à ação de improbidade administrativa, e a equipara à obrigação de ressarcir os danos ao erário, violando a legalidade estrita e os direitos fundamentais do sancionado, além de desvirtuar o caráter punitivo da multa, convertendo-a em sucedâneo de indenização civil, sem respaldo normativo.

No pior dos cenários, entre aqueles nos quais se mantém o compromisso de aplicar as cominações da Lei de Improbidade Administrativa sem desrespeitar os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, admitir-se-ia a fixação dos efeitos patrimoniais da multa civil a partir da sentença de mérito, caso contenha condenação líquida e exigível, mas jamais se poderia retroagir tais efeitos à data do ato ímprobo.

No acórdão prolatado pelo STJ, afirmou-se que “a incidência de correção monetária [sobre a multa civil] apenas após a sua fixação ou do trânsito em julgado, resultaria em quantia desvinculada do proveito econômico obtido, do dano causado ao erário ou do valor da remuneração percebida pelo agente”.

A ideia de “desvinculação” tal como apresentada é equivocada, pois independentemente do termo inicial de incidência dos juros e da correção que seja fixado, o valor da multa continuaria vinculado ao valor do prejuízo ao erário, do enriquecimento ilícito ou da remuneração do agente, pois, em qualquer cenário, essas rubricas continuariam sendo a base de cálculo da multa, porque estão normativamente fixadas nos incisos do art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), e das quais o julgador não pode se afastar.

A vinculação, portanto, não deixaria de existir pela adoção de tese diversa quanto ao termo inicial dos juros de mora e correção monetária, pois, é a base de cálculo que deverá ser atualizada no momento da imputação da sanção pecuniária.

É preciso diferenciar a base de cálculo da sanção de multa dos critérios de atualização monetária (juros e correção) dessa penalidade, que é fixada com base de cálculo prescrita em lei. Uma coisa é a base de cálculo da multa, e outra, completamente independente, é a forma de apuração da atualização monetária dessa multa.

A “equivalência” que a multa civil deve ter com o valor do dano causado ou ao enriquecimento obtido, prescrita na Lei como base de cálculo para sua aferição, não é sinônimo de que os efeitos patrimoniais dessa sanção devem ser idênticos ao da obrigação de ressarcir o dano, pois, como dito, essas rubricas possuem natureza jurídica distintas e finalidades diversas, além de se originarem de fundamentos jurídicos diferentes e se submeterem a regimes também distintos.

Se ambas tivessem a mesma natureza, fundamento de validade e regime jurídico, não haveria razão para coexistirem, sob pena de bis in idem.

É preciso ter em mente que a multa (punitiva) e sua forma de atualização são conceitos segregáveis e não vinculados, tal como o próprio conceito da obrigação de ressarcimento do dano ao Erário e da sanção de multa civil, que não se confundem, como demonstrado anteriormente, mas que acabaram sendo embaralhados e recebendo tratamento idêntico pelo STJ.

A preocupação do STJ quanto à necessidade de que a multa civil preserve o mesmo valor do dano patrimonial atualizado a ser ressarcido ao Erário14, parece equivocada como fundamento jurídico para justificar essa “equiparação das atualizações”, pois, embora nobre, não possui fundamento normativo, o que é indispensável em se tratando da interpretação de dispositivos normativos que prescrevem sanções dentro da ótica do direito administrativo sancionador.

Aliás, essa é uma preocupação para a qual a própria Lei de Improbidade, com a redação dada pela Lei 14.230/2021 (LGL\2021\14476), traz o devido remédio, ao inserir no art. 12 o § 2o, que prescreve que a multa civil a ser aplicada “pode ser aumentada até o dobro, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, o valor calculado na forma dos incisos I, II e III do caput deste artigo é ineficaz para reprovação e prevenção do ato de improbidade”.

Portanto, não parece adequada, como fundamento para equiparar o termo inicial dos juros de mora e da correção monetária da multa civil ao do ressarcimento ao erário, essa ideia externada no julgamento do REsp 1.942.196/PR.

Reforçando essa constatação, a própria redação do § 2o do art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), acima mencionado, rompe a ideia de que deve haver vinculação exata entre os efeitos patrimoniais das duas rubricas (ressarcimento ao erário e multa civil), ao permitir que a multa, cuja base de cálculo é o valor do acréscimo patrimonial ou do prejuízo ao erário, possa ser aumentada até o dobro em se tratando de réu economicamente abastado.

E assim o é justamente em razão da natureza, origem e finalidade da multa civil, que não é reparar o dano causado à Administração Pública, e sim punir o agente público e reprimir o ato danoso praticado, demonstrando as graves consequências a que estão submetidos os atos de improbidade administrativa.

Visando justificar a fixação do termo inicial dos juros e correção monetária da multa civil a partir da data do ato ímprobo, identicamente à obrigação de ressarcir o dano, o acórdão do REsp 1.942.196/PR traz a afirmação de que “as sanções e o ressarcimento do dano, previstos na Lei 8.429/92 (LGL\1992\19), inserem-se no contexto da responsabilidade extracontratual por ato ilícito. E, em se tratando de responsabilidade extracontratual, aplicável o disposto no art. 398 do Código Civil (LGL\2002\400)”.

Mais uma vez sobrepondo os conceitos de multa civil e obrigação de ressarcimento ao erário, a Corte equivocadamente submete a um mesmo regime jurídico, no tocante aos efeitos patrimoniais, duas cominações severamente distintas, como já visto.

Não é adequada a afirmação de que a multa civil por ato de improbidade administrativa se insere no contexto da responsabilidade civil extracontratual. O que se insere em tal contexto é tão somente a obrigação de ressarcimento integral do dano patrimonial causado ao erário.

Isto é, com uma boa vontade hermenêutica, a adequada compreensão dos institutos permite admitir a aplicação do art. 398 do CC (LGL\2002\400) exclusivamente quanto ao dever de ressarcimento do dano ao erário, enquadrando-o como uma obrigação decorrente de ato ilícito abarcada pelo art. 398 do Codex e tratada pelas Súmulas 43 e 54/STJ.

E isso porque o dever de ressarcimento do dano ao erário não possui natureza punitiva, mas sim reparatória15, o que autoriza aplicar a tal obrigação o regramento geral prescrito pelos arts. 159, 186 e 927 do CC (LGL\2002\400)16, diferentemente da multa civil, que possui natureza punitiva, não se submetendo ao regramento obrigacional do Código Civil (LGL\2002\400).

4 Sanção estatal com reflexos patrimoniais retroativos: antecipação de penalidade?

A aplicação das Súmulas 43 e 54/STJ – elaboradas para disciplinar a atualização patrimonial de condenações indenizatórias, decorrentes da aplicação da responsabilidade civil extracontratual – presume uma obrigação de indenizar já existente a partir do evento danoso, como é a obrigação de reparar danos oriundos de atos ilícitos prevista genericamente nos arts. 186 e 927 do CC (LGL\2002\400), e que amolda-se à regra prescrita no art. 398 do mesmo diploma, segundo a qual “nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou”.

Essa conclusão não se coaduna com a natureza da multa civil porque esta não surge automaticamente com a prática do ato ímprobo, mas depende da atuação do Estado-juiz, mediante devido processo legal em que se assegure o contraditório e a ampla defesa, e no qual se apure a responsabilidade do agente público, com posterior prolação de uma sentença condenatória que efetivamente estabeleça a existência e aplicação da multa em relação ao agente.

Antes da prolação de sentença judicial definitiva que condene o agente público às penas civis e político-administrativas prescritas no art. 12 da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), e do respectivo trânsito em julgado, não há obrigação ou conduta exigível em face do acusado, tanto é assim que a Lei de Improbidade só autoriza a execução das sanções nela prescritas, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, conforme § 9o do mesmo dispositivo.

Daí porque é mais aderente ao princípio da legalidade administrativa, às garantias constitucionais e aos princípios do direito administrativo sancionador (art. 1o, § 4o, da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19)), a interpretação segundo a qual as sanções pela prática de ato de improbidade administrativa somente podem ter eficácia e exigibilidade após o trânsito em julgado da respectiva condenação, interpretação esta que encontra amparo normativo no próprio texto da Lei de Improbidade Administrativa, no art. 12, § 9o, inserido pela Lei 14.230/2021 (LGL\2021\14476).

E como consequência dessa regra, chega-se à conclusão de que os efeitos patrimoniais dessas sanções também só poderão incidir após o trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória.

E entre tais efeitos patrimoniais, no que interesse ao presente artigo, destacam-se justamente os juros de mora e correção monetária sobre a multa civil.

A antecipação dos efeitos patrimoniais da sanção – pela incidência de correção monetária e juros a partir de data anterior à constituição da sanção (sentença) – fere o princípio da anterioridade da sanção e da legalidade material da pena, consagrado pela doutrina17.

Ainda que se possa argumentar, com base em analogia ao direito penal, que a sanção patrimonial “retroage” quanto ao fato gerador (o ato ímprobo), os efeitos patrimoniais concretos da sanção não podem incidir antes de seu reconhecimento definitivo. No direito penal, por exemplo, a pena só produz efeitos executivos após o trânsito em julgado (art. 5o, LVII, CF (LGL\1988\3)).

Além disso, a aplicação de juros e correção monetária sobre a multa civil a partir da data do ato ímprobo implica uma antecipação dos efeitos patrimoniais da pena por via oblíqua, dando à multa civil características de ressarcimento, quando ela não tem, o que reforça a necessidade de respeito ao marco temporal da constituição definitiva da multa civil.

O próprio texto da Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19), com a redação dada pela Lei 14.230/2021 (LGL\2021\14476), ampara a premissa de que as sanções por improbidade têm eficácia ex nunc, não retroativa (art. 12, § 9o e art. 20). O efeito jurídico constitutivo da sentença condenatória delimita o início da exigência da sanção, entendimento este do qual o STJ se distancia ao fixar como termo inicial de atualização da multa a data do ato ímprobo.

A aplicação de juros e correção monetária antes dessa constituição, com amparo no art. 398 do CC (LGL\2002\400) e nas Súmulas 43 e 54, resulta em transformar a multa civil em indenização por danos materiais, contrariando o próprio regime jurídico do direito administrativo sancionador.

Nesse cenário de incongruências quanto ao estabelecimento de efeitos patrimoniais de uma sanção estatal, o caminho seguro para se chegar à solução da controvérsia naturalmente seria a fixação do termo inicial dos juros e correção monetária da multa civil a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença condenatória, destino este do qual o STJ se distanciou.

5 Conclusão

Ao fixar a data do ato ímprobo como termo inicial da correção monetária e dos juros de mora da multa civil por ato de improbidade administrativa, o STJ parece desconsiderar a natureza punitiva da multa e coloca categorias jurídicas distintas sob um mesmo regramento, promovendo indevida equiparação entre sanção administrativa e obrigação de ressarcimento, pelo menos no que diz respeito à atualização do valor patrimonial das referidas condenações previstas na Lei 8.429/1992 (LGL\1992\19).

O entendimento derrotado pelo STJ, que foi exarado no voto-vogal do acórdão do TJPR que foi objeto do REsp 1.942.196/PR, no sentido de que a correção monetária da multa deveria incidir a partir da publicação do acórdão e os juros de mora somente poderiam incidir a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória, mostrou-se mais adequado e alinhado às diferenças dogmáticas claras entre essas duas cominações legais da Lei de Improbidade Administrativa.

O posicionamento do STJ, além de tecnicamente equivocado, compromete a coerência do sistema punitivo da improbidade administrativa e dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1o, § 4o, da LIA), sendo urgente sua revisão em prol da preservação das garantias constitucionais e da lógica interna do direito administrativo sancionador.

6 Referências bibliográficas

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GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001.

MEDEIROS, Sergio Monteiro. Lei de improbidade administrativa: comentários e anotações jurisprudenciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.

NEIVA, José Antônio Lisboa. Improbidade administrativa: legislação comentada artigo por artigo – doutrina, legislação e jurisprudência. Niterói: Impetus, 2009.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade administrativa: direito material e processual. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Ed. RT, 1985.

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1 .OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: Ed. RT, 1985. p. 86.

2 .MEDEIROS, Sergio Monteiro. Lei de improbidade administrativa: comentários e anotações jurisprudenciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 131.

3 .STJ, 2a T., REsp 1.385.582/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 01.10.2013, DJe 15.08.2014; STJ, 2a T., AgRg no REsp 1.152.717/MG, rel. Min. Castro Meira, j. 27.11.2012, DJe 06.12.2012; STJ, 2ª T., AgRg no REsp 1.122.984-PR, rel. Min. Humberto Martins, DJe 09.11.2010.

4 .FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa: comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 123.

5 .ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos esquematizado. São Paulo: Método, 2011. p. 713; GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 486.

6 .Com efeito, a aplicação de multa civil não é automática ou obrigatória no caso de configuração de ato de improbidade administrativa.

7 .GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

8 .MEDEIROS, Sergio Monteiro. Op. cit. p. 127.

9 .NEIVA, José Antônio Lisboa. Improbidade administrativa: legislação comentada artigo por artigo – doutrina, legislação e jurisprudência. Niterói: Impetus, 2009. p. 109.

10 .BANDEIRA DE MELLO, 2010 apud FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.

11 .Nesse sentido: NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade administrativa: direito material e processual. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 275.

12 .De acordo com Rafael Carvalho Rezende de Oliveira e Daniel Amorim Assumpção Neves: “As sanções penais e administrativas, em razão de suas semelhanças, submetem-se a regime jurídico similar, com a incidência de princípios comuns que conformariam o Direito Público Sancionador, especialmente os direitos, as garantias e os princípios fundamentais consagrados no texto constitucional, tais como: (a) legalidade, inclusive a tipicidade (art. 5o, II e XXXIX; art. 37); (b) princípio da irretroatividade (art. 5o, XL); (c) pessoalidade da pena (art. 5o, XLV); (d) individualização da pena (art. 5o, XLVI); (e) devido processo legal (art. 5o, LIV); (f) contraditório e ampla defesa (art. 5o, LV); (g) razoabilidade e proporcionalidade (art. 1o e art. 5o, LIV) etc.” (Improbidade administrativa: direito material e processual. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 28).
No mesmo sentido: BINENBOJM, Gustavo. O direito administrativo sancionador e o estatuto constitucional do poder punitivo estatal: possibilidades, limites e aspectos controvertidos da regulação no setor de revenda de combustíveis. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, edição especial: Administração Pública, risco e segurança jurídica, p. 470, 2014.

13 .STF, Tribunal Pleno. ADCs 43, 44 e 54, rel. Min. Marco Aurélio Mello.

14 .Ou dos valores ilicitamente acrescidos ao patrimônio do agente público e da remuneração percebida à época dos fatos tidos como atos de improbidade administrativa (arts. 9o e 11 da Lei 8.429/1992).

15 .Reforçando este entendimento: GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 444; SOBRANE, Sérgio Turra. Improbidade administrativa: aspectos materiais, dimensão difusa e coisa julgada. São Paulo: Atlas, 2010. p. 156.

16 .Já que o próprio Código prescreve como regra geral a obrigatoriedade de reparar o dano causado por ato ilícito, e caracteriza o ato ilícito como violação de direito somada a um dano  causado a outrem, não havendo, quanto a este ponto, conflito com as disposições da Lei de Improbidade Administrativa no que se refere ao dever de ressarcimento dos danos ao erário.

Neste sentido, Wallace Paiva Martins Junior afirma que “o ressarcimento do dano, já previsto no art. 5o da lei como decorrência do princípio geral do art. 159 do Código Civil [de 1916, cujo correspondente no Código Civil de 2002 é o art. 186], é obrigatório na hipótese de prejuízo ao erário (art. 10) e condicionado à sua efetiva prova nos casos de enriquecimento ilícito e atentado aos princípios da Administração” (Probidade administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 269).

17 .Nesse sentido: MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 104).