Flávio Cheim Jorge (Prof. Titular da Universidade Federal do Espírito Santo)
Artigo publicado no site Consultor Jurídico (23 de abril 2024)
Publicado também no Portal Migalhas (23 de abril de 2024)
- Introdução
Ao receber o convite dos Professores Flávio Yarshell e José Roberto Bedaque para integrar a banca examinadora do Concurso para Professor Titular de Processo Civil da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (USP), admito que não tinha a adequada dimensão de sua importância, e tampouco a compreensão do seu significado para história do direito em nosso país.
Mesmo a minha experiência em dezenas de bancas examinadoras, de Mestrado e Doutorado (USP, PUC, UFMG, UFSC, UFES, UFBA entre outras), de Livre-Docência na própria Faculdade de Direito da USP
e até mesmo de Professor Titular (UFES, UFBA), não foi suficiente para descortinar o que se avizinhava.
Somente próximo ao concurso tive acesso ao livro “A Cátedra de Processo Civil no Largo de São Francisco”, gentilmente fornecido pelo Professor Thiago Ferreira Siqueira, da UFES, escrito pelo estimado amigo Prof.
José Rogério Cruz e Tucci.
É inegável, até mesmo porque decorre do conhecimento comum, que a Faculdade de Direito da USP sempre foi referência na contribuição do estudo da ciência processual, contudo o que procuro revelar nas próximas linhas, o que de fato me encantou, é a tradição do que foi construído.
A liturgia dos concursos, a passagem das vagas, a composição das bancas examinadoras, a sala de becas etc. Tudo isso é memória viva de nossa ciência processual.
Enquanto reconheço o valor de outras instituições, como minha alma mater, a PUC-SP, onde realizei meus estudos de pós-graduação sob a batuta da família Arruda Alvim e tutela de minha mentora, Profa. Teresa Arruda
Alvim, a história das Arcadas nos convida a reflexões em um momento em que a informação instantânea e superficial muitas vezes prevalece.
Afinal de contas, como lembra o Prof. José Rogério Cruz e Tucci, ao registrar seu fascínio quando do ingresso, como aluno, na Faculdade de Direito da USP, são “egressos desta prestigiosa instituição 10 Presidentes da República, 45 Governadores da Província e, sucessivamente, do Estado de São Paulo, inúmeros ministros de Estado, ministros dos tribunais superiores, parlamentares, além de um significativo número de juristas e renomados
operadores do direito” (A Cátedra de processo civil no Largo de São Francisco, p. 129).
O concurso para Professor Titular de Processo Civil foi realizado nos dias 15 a 19 de abril de 2024 e destinava-se ao preenchimento da vaga
antes ocupada pelo Prof. Jose Rogério Cruz e Tucci.
A banca examinadora, aprovada por unanimidade pela Congregação, foi assim composta: Professor Titular José Roberto dos Santos Bedaque (FDUSP); Prof. Titular Flávio Luiz Yarshell (FDUSP); Professora Titular Paula Costa e Silva (Universidade de Lisboa); Professor Titular Flávio Cheim Jorge (UFES); e Ministra Fátima Nancy Andrighi (STJ).
Ao final, por indicação dos cinco membros, foi aprovado, em primeiro lugar, o Prof. Heitor Vitor Mendonça Fralino Sica. Sobre esse concurso e o contexto relativo à cátedra de Processo
Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que versam essas breves considerações.
- A Cátedra
O livro do Prof. José Rogério Cruz e Tucci oferece uma contribuição inestimável para a compreensão do surgimento e preenchimento das cátedras de processo civil na Faculdade de Direito da USP. Detalhando o
contexto de cada vaga, a composição das bancas examinadoras e as teses apresentadas, Tucci nos presenteia com uma obra essencial não apenas para os operadores do Direito, mas para toda a sociedade.
Originada do latim cathĕdra e do grego καϑέδρα, a cátedra representa a mais alta posição de um professor em uma instituição de ensino. Na Faculdade de Direito da USP, existem três cátedras de
processo civil, preenchidas por concurso público após a vacância. Os habilitados a participar do concurso são professores detentores do título de Livre-Docente outorgado pela USP ou por ela reconhecido.
O concurso compreende três fases: a arguição da tese original do candidato, o julgamento de títulos e a prova pública oral de erudição.
A primeira fase, a arguição da tese, é uma sessão pública na qual cada membro da banca examinadora procede à arguição do candidato por até 30 minutos, seguido das considerações e respostas do candidato, em igual
tempo. Esta fase é notoriamente longa, com duração média de cinco horas.
A segunda fase envolve o julgamento dos méritos do candidato com base em suas atividades acadêmicas, produção científica, didática, formação de discípulos, serviços à comunidade e outras contribuições universitárias.
A prova de erudição é um dos momentos mais aguardados e prestigiados do concurso, no qual o candidato ministra uma aula para a banca e todos os presentes sobre um tema específico, por ele indicado, com vinte
quatro horas de antecedência, dentre 20 temas previamente estabelecidos no Edital. Diferentemente de outros concursos, o candidato, dentro do prazo estipulado (entre 40 e 60 minutos), deve demonstrar um profundo
conhecimento, consultando apenas notas resumidas ou esquemas de aula.
Como explica o Prof. José Rogério Cruz e Tucci, na mencionada obra, a primeira cátedra de processo civil foi criada em 11 de agosto de 1827, dentro do contexto da lei do império que instituiu os dois primeiros cursos de direito no Brasil (em São Paulo e Olinda), sendo provida por Luiz Nicolau Fagundes Varella (1828-1831).
Essa primeira cátedra, na sequência, foi regida pelos Professores Antonio Maria de Moura (1831-1842); José Ignacio Silveira da Motta (1842- 1854); Joaquim Inácio Ramalho (1854-1883); João Pereira Monteiro Júnior
(1883-1901); João Mendes de Almeida Júnior (1901-1916); Manuel Aureliano de Gusmão (1917-1922); Francisco Antonio de Almeida Morato (1922-1937); Noé Azevedo (1937-1939); Benedito de Siqueira Ferreira (1940-1957); Alfredo
Buzaid (1958-1984); e Cândido Rangel Dinamarco (1986-2007).
O atual Professor Titular da primeira cátedra é Flávio Luiz Yarshell, que tomou posse em 2009, após regular concurso oriundo da vaga surgida em decorrência da aposentadoria do Professor Cândido Rangel Dinamarco.
Em seu concurso, o Prof. Flávio Yarshell defendeu a tese “Antecipação da prova sem requisito da urgência e direito autônomo à prova”, perante a banca examinadora formada pelos Professores José Rogério Cruz e
Tucci (USP), José Roberto dos Santos Bedaque (USP), Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (UFRGS), Humberto Theodoro Júnior (UFMG) e Leonardo Greco (UFRJ).
De minha parte, registro que tive a honra de tê-lo como membro examinador de minhas bancas de Doutorado na PUC-SP, em 1998, e de Professor Titular da Universidade Federal do Espírito Santo, em 2018.
A terceira cátedra foi criada em 1936 e provida pelo Professor Sebastião Soares de Faria (1936-1952). Na sequência, foi regida pelos professores Luis Eulálio de Bueno Vidigal (1953-1969), Celso Neves (1972-
1983) e Antonio Carlos de Araújo Cintra (1986-2004).
A regência atual da terceira cátedra de direito processual civil é do Professor José Roberto dos Santos Bedaque, que a assumiu através do Concurso Público realizado em novembro de 2005, com a apresentação da
tese “Efetividade do processo e técnica processual: tentativa de compatibilização”.
A banca examinadora do concurso foi composta pelos Professores Cândido Rangel Dinamarco (USP), José Ignácio Botelho de Mesquita (USP), José Carlos Barbosa Moreira (UERJ), Adroaldo Furtado Fabrício (UFRGS)
e Humberto Theodoro Júnior (UFMG).
- O Concurso para a segunda cátedra
A segunda cátedra foi criada em 1934 e inicialmente dela tomou assento o Professor Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho (1934-1957). Posteriormente, foi regida por Moacyr Amaral Santos (1958-1972), José Ignácio Botelho de Mesquita (1975-2005) e José Rogério Cruz e Tucci (2006-2019).
Na sequência, ao término do mandato de Diretor da Faculdade de Direito da USP (2014-2018), em abril de 2019, o Professor Titular José Rogério Cruz e Tucci, aos 62 anos de idade, decidiu requerer sua aposentadoria por
tempo de serviço. Continua hoje, contudo, na condição de Professor Titular Sênior, ministrando aula na pós-graduação e orientando novos discípulos.
Em 10 de julho de 2023, foi publicado o Edital do concurso público destinado ao provimento da segunda cátedra de direito processual da Faculdade de Direito da USP, deixada pelo Professor Titular José Rogério Cruz
e Tucci, cujas inscrições ficaram abertas de 17/07/2023 a 21/01/2024.
Quatro renomados professores da instituição se inscreveram para o concurso, apresentando as seguintes teses originais:
- Heitor Vitor Mendonça Fralino Sica: Contribuição ao Estudo da Substituição e da Representação Processuais: elementos comuns do agere iudiciali iure pro alio;
- Ricardo de Barros Leonel: Tutela Jurisdicional no Direito Processual Contemporâneo;
- Carlos Alberto de Salles: Risco e Processo: a tutela provisória de urgência no Código de Processo Civil brasileiro;
- e Paulo Henrique dos Santos Lucon: Abuso do Processo (perfil lógico-sistemático).
O concurso foi realizado nos dias 15 a 19 de abril, seguindo o seguinte calendário para a defesa de tese: no dia 15 de abril, Heitor Vitor Mendonça Fralino Sica; no dia 16 de abril, Ricardo de Barros Leonel; no dia 17
de abril, Carlos Alberto de Salles; e, no dia 18, Paulo Henrique dos Santos Lucon.
Também no dia 18 de abril, às 13:00 h., os candidatos indicaram publicamente os temas da prova de erudição. Assim, no dia 19 de abril, a partir das 13:00 h., foram realizadas as provas na seguinte ordem e tema: Heitor
Vitor Mendonça Fralino Sica (Recursos e ações autônomas de impugnação: qual o ponto de equilíbrio?); Ricardo de Barros Leonel (Fato e direito superveniente: impactos do desfecho do processo, nos diferentes graus de
jurisdição); Carlos Alberto de Salles e Paulo Henrique dos Santos Lucon escolherem o mesmo tema (Garantia constitucional do contraditório examinada à luz da legislação processual civil).
Ao final da última prova de erudição, a banca examinadora se reuniu para o julgamento de títulos. Às 18:00 horas do dia 19 de abril, o Professor José Roberto do Santos Bedaque procedeu à leitura pública das notas individuais atribuídas
pelos membros da banca examinadora à cada prova. E após a apuração das notas, conferida rigorosamente pela assistente acadêmica Rosana Midori Y Hashimoto, anunciou o resultado: a comissão examinadora indicou em primeiro
lugar o candidato Heitor Vitor Mendonça Fralino Sica para o provimento do cargo de Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo.
As sessões públicas foram amplamente prestigiadas, com a presença de professores, advogados, e alunos da graduação e pós-graduação, demonstrando o interesse da comunidade acadêmica no processo – dentre
eles, os Professores Cássio Scarpinella Bueno (PUC-SP), Kazuo Watanabe e o Ministro aposentado do STJ, Sidnei Beneti.
O Professor José Rogério Cruz e Tucci, mesmo após a sua aposentadoria, acompanhou integralmente o concurso e, vestido com sua beca, sentou-se ao lado dos candidatos quando da proclamação do resultado.
Estou convicto de que a distinção concedida a mim, de participar da Banca Examinadora para o concurso da segunda cátedra de processo civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, representa o ponto alto
de minha carreira docente.
Foi, de fato, uma experiência única e de difícil descrição fazer parte da história da Faculdade de Direito da USP ao lado dos Professores José Roberto dos Santos Bedaque e Flávio Luiz Yarshell, notáveis processualistas
responsáveis pela perpetuação do legado deixado pelos professores que ocuparam as cátedras de processo civil, da Professora Paula Costa e Silva, reconhecida como referência não apenas na Europa, mas em todo o mundo, no estudo e construção de um processo civil moderno e adequado, e, igualmente, da Ministra Nancy Andrighi, cujo conhecimento e sensibilidade representam um verdadeiro porto seguro na interpretação do direito processual civil, contribuindo significativamente para o desenvolvimento e aprimoramento dessa área do conhecimento.
Ao assumir a segunda cátedra de Processo Civil na Faculdade de Direito da USP, o Prof. Heitor Vitor Mendonça Fralino Sica dará continuidade ao notável legado deixado por seu antecessor, o Prof. José Rogério Cruz e Tucci.
Seguindo os passos já estabelecidos e o trabalho desenvolvido por Tucci, Sica terá a oportunidade de agregar sua própria perspectiva e contribuição para a disciplina. Ao manter a tradição de excelência acadêmica e compromisso com
o avanço do direito processual civil, o Prof. Sica certamente irá fortalecer ainda mais a reputação da cátedra e da Faculdade de Direito da USP.