Artigo de autoria do advogado Marcelo Abelha Rodrigues e do promotor de Justiça Hermes Zaneti Júnior
Publicado no Portal Migalhas no dia 15 de abril de 2024
A música de Raul Seixas celebra a liberdade de pensamento e mudança ao longo da vida. Essa metamorfose também é necessária ao analisar o Tema 1.169 do STJ sobre o cumprimento de sentença do art. 95 do CDC. O debate central é se a liquidação prévia é obrigatória para ação executiva ou se o juiz deve avaliar os elementos do caso para decidir o prosseguimento da ação.
Lançada em 1973 a música do eterno Raul Seixas é uma ode, um hino clássico, à liberdade de pensar e o ao fato de que todo ser humano deve ser uma metamorfose ambulante, pois a morte é estática e a vida é dinâmica. Definitivamente não pensamos sobre o assunto X da mesma forma como pensávamos há 10 anos atrás. Podemos mudar de opinião ou densificar a que já tínhamos pensado. Ainda bem que somos assim, livres para não sermos reféns de um mesmo modo de pensar.
A mensagem poética extraída do baú do Raul se aplica, com rigor, ao problema levantado pelo Tema 1.169 do STJ.
Considerando que “a lei está e o fato move-se” como disse Carnelutti, é necessário (re) pensar o tema do cumprimento de sentença da sentença condenatória genérica do art. 95 do CDC com olhos de uma metamorfose ambulante.
Ao decidir o tema objeto da afetação é preciso que o STJ “atualize” o modelo bifásico – liquidação/execução dos direitos individuais homogêneos – a uma forma de pensar a execução que seja dinâmica, participativa, cooperativa e com a inversão do ônus subjetivo do impulso da liquidação e da execução. Afinal, a matriz do CPC/15 aponta para a inclusão da atividade satisfativa na ideia de solução integral do mérito e duração razoável do processo justamente como imperativo da tutela efetiva. Exigindo, ainda, a cooperação e a boa-fé de todos que de qualquer forma atuem no processo (arts. 4º, 5º e 6º, CPC).
O Tema 1.169 na Corte Especial do STJ sob relatoria do ministro Benedito Gonçalves tem como questão submetida a julgamento: definir se a liquidação prévia do julgado é requisito indispensável para o ajuizamento de ação objetivando o cumprimento de sentença condenatória genérica proferida em demanda coletiva, de modo que sua ausência acarreta a extinção da ação executiva, ou se o exame quanto ao prosseguimento da ação executiva deve ser feito pelo magistrado com base no cotejo dos elementos concretos trazidos aos autos.
Segundo a redação acima uma questão precisa ser respondida: deve-se extinguir ou não extinguir a demanda executiva iniciada sem a liquidação prévia da sentença condenatória genérica proferida em demanda coletiva do art. 95 do CDC?
A mensagem que pretendemos passar com este breve ensaio antecede a própria formulação da quaestio objeto da afetação. A pergunta que merece ser previamente respondida é a seguinte: por que devemos continuar a adotar um modelo bifásico de liquidação/execução onde o ônus do impulsionamento seja do credor e não do devedor?
É importante reforçar essa mensagem lembrando que o CPC/15 deixou claro que a satisfação dos direitos integra a tutela de mérito (art. 4º) e, portanto, quando alguém vai em juízo buscar a tutela de seus interesses não está ali para perseguir uma tutela meramente condenatória, mas sim os resultados práticos decorrentes da sua efetivação em caso de procedência da pretensão formulada. Essa integração da satisfação na tutela efetiva é reconhecida, ademais, pela Corte Europeia de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ao pedir a tutela jurisdicional para debelar uma crise de adimplemento o que espera o jurisdicionado é a satisfação do direito, que, via de regra se dá por meio da execução.
Não é por acaso que a ineficiência e inefetividade da execução civil é, com base nos números do CNJ, um problema que afeta não apenas o exequente, mas a credibilidade do próprio Poder Judiciário, resvalando efeitos deletérios para a economia brasileira com o aumento do risco-país.
Atento a isso o legislador tem mudado a perspectiva de como deve ser enxergada a tutela satisfativa dos direitos, especialmente quando estamos diante do cumprimento de sentença, fase processual subsequente á obrigação reconhecida na sentença. A solução do caso levado a juízo é o eixo sobre o qual deve se debruçar as técnicas processuais, seja por meio de um caminho que vise a composição ou de uma decisão por julgamento.
No âmbito das soluções por decisão judicial não é por acaso que os cumprimentos de sentença das obrigações específicas – que no mundo teórico não enseja fase liquidatória – tanto podem ser iniciadas de ofício nos termos do art. 536 e art. 538, §3º quanto por meio de requerimento do exequente. A exegese que se extrai do art. 536 não é o de que o juiz estaria iniciando de ofício a tutela executiva, mas sim atendendo a provocação feita pelo jurisdicionado quando promoveu a demanda com vista a obter a solução integral do mérito (art. 4º).
É verdade que ainda mantivemos no art. 513 do CPC a anacrônica e incompreensível regra permeada de um liberalismo que nem no Code de Procedure Français ainda se mantém que é da necessidade de provocação do exequente para dar sequência ao cumprimento definitivo da sentença das obrigações de pagar quantia (art. 513). Nítida devoção de uma cultura que protege com paternalismo o direito de propriedade daquele que será expropriado. Ademais, no processo civil brasileiro é possível pensar nesta medida permitindo a decisão do juiz em contraditório e sem surpresa, preferencialmente com o requerimento do colegitimado no processo coletivo ou do MP quando não for o autor e estiver atuando como custos juris.
Não há razão nenhuma para não recair sobre o sujeito que foi condenado pela sentença o dever de adotar um comportamento de cumprir a decisão judicial, especialmente quando estamos diante de um provimento definitivo e no estágio de desenvolvimento da cooperação processual. Contrario sensu não há razão para impor ao beneficiado pela sentença o ônus de impulsionar a liquidação e execução.
Assim como o exequente tem todas as condições de elaborar uma memória de cálculo da sentença para dar início ao seu cumprimento, também o devedor o tem, tanto que ele mesmo pode iniciar a consignação em pagamento por meio do art. 5261. Além disso, recorde-se que para o executado alegar excesso de execução na impugnação ao cumprimento de sentença ele deve juntar a memória discriminada dos cálculos do valor supostamente devido (art. 525, §4º)2. Onde está o dever de cooperação, neste caso, em cumprir com exatidão os provimentos judiciais? (art. 77, IV do CPC)
A obtenção da sentença condenatória é apenas uma parte, inacabada, da solução integral do mérito. Não há razão para que o jurisdicionado, beneficiado com o título liquidatório/executivo judicial definitivo, tenha que, novamente, requerer o início da tutela, agora satisfativa, quando já reclamou a tutela dos seus direitos desde quando bateu nas portas do poder judiciário. A alegação de que esse passo não poderia ser “iniciado” pelo Judiciário sob pena de comprometer a inércia é totalmente descabida porque, frise-se, ele já foi provocado por meio da petição inicial que deu início à fase cognitiva. Ninguém, em sã consciência, busca a tutela jurisdicional para contentar-se com uma sentença condenatória. Caso o exequente não quisesse prosseguir na fase executiva do cumprimento da sentença bastaria peticionar neste sentido. Tentar dizer que a regra do art. 536 – que permite início de ofício do cumprimento de sentença – não poderia acontecer na execução por expropriação porque o exequente pode não desejar prosseguir para a tutela satisfativa é argumento muito frágil, afinal de contas pode ele manifestar-se a qualquer tempo seja para impedir que se inicie, seja para desistir da execução iniciada (art.775).
Ao invés de estabelecer o ônus do titular do crédito pecuniário reconhecido na sentença ter que provocar a jurisdição para deflagrar a tutela executiva sob pena de arquivamento do processo, esse encargo deveria recair sobre o executado, ou seja, expirado um prazo determinado na sentença posterior ao transito em julgado sem que tivesse o cumprimento espontâneo da decisão condenatória de pagar quantia transitada em julgado ou que tivesse sido dado início à consignação pelo executado (art. 526), deveria o Estado dar o impulso oficial no sentido de finalizar a tutela prometida por meio da satisfação do direito, ou seja, dar a solução integral do mérito para o qual já foi provocado na petição inicial.
Considerando que a experiência mostra que a grande maioria das sentenças condenatórias definitivas de pagar quantia não são espontaneamente cumpridas não nos parece haver qualquer sentido lógico em deixar sob o crivo do credor o ônus do impulso do cumprimento definitivo de pagar quantia.
A flexibilidade dos modelos executivos prevista no Código a partir da possibilidade de adequação, pelo juiz e quando necessário, da tutela mais efetiva para o caso concreto (Art. 139, IV), inclusive com a generalização das astreintes, já está indicando uma mudança de rumos.
Nesse diapasão quando transferimos este raciocínio para o processo coletivo, em especial para aos individuais homogêneos mencionados no Tema 1.169, a necessidade de proceder essa metamorfose ambulante fica mais acentuada porque evitar-se-á uma miríade de demandas individuais para liquidar e satisfazer o crédito exequendo já que caberá ao réu o dever de proceder a liquidação e cumprimento do julgado.
Nas hipóteses em que a ação coletiva tutela direitos de um grupo que já tenha uma relação jurídica base com o réu, como no caso de correntistas do banco, servidores do ente público etc., e isso portanto vale para o caso que deu origem ao Tema ora comentado, nenhuma dificuldade haverá para o requerido buscar em seus dados as informações do titular do grupo beneficiado pela sentença e proceder a liquidação e o respectivo cumprimento sob pena de que se não o fizer o magistrado possa valer-se de medidas atípicas do artigo 139, IV do CPC que imponham o referido cumprimento. Alguma dificuldade haverá, sem dúvida, quando a causa de pedir não se assente numa relação jurídica base envolvendo o réu e o grupo a ser protegido pela ação coletiva. Mesmo assim nesta hipótese é possível seguir com este mesmo raciocínio.
Nestas sentenças condenatórias à prestação pecuniária deve-se preencher o lacônico art. 95 do CDC com a exegese do art. 491 do CPC3 onde resta clara a preocupação de que o magistrado seja o mais minudente possível no sentido de facilitar a satisfação do direito. Portanto, sempre que for possível deverá o magistrado fixar o valor mínimo de indenização individual considerando os parâmetros por ele estabelecidos.
Assim, por exemplo, aqueles que ficaram sem acesso à água por 7 dias porque o rio foi contaminado pela empresa, devem receber o valor mínimo X. Os casos que excedam esta matriz devem ser parametrizados por outras matrizes e valores de acordo com os subgrupos atingidos pela decisão. Um bom exemplo de boas práticas e roteiro inteligente de como deve ser a sentença condenatória genérica do artigo 95 do CPC, especialmente naquelas hipóteses em que não há uma relação jurídica base entre o grupo tutelado e o réu, é que cumpra com exatidão o art. 491 do CPC, servindo de roteiro o que prevê o artigo 26 do PL 1.6414.
O STJ está com a faca e o queijo na mão: interpretar o art. 95 do CDC (1) com os olhos setecentistas e oitocentistas de uma liquidação e execução governadas por um liberalismo clássico? ou (2) reconhecer que em tempos de cooperação processual, eficiência da prestação jurisdicional e diante da tutela de direitos de grupo, normalmente muito vulneráveis, é ônus do condenado impulsionar a liquidação e cumprimento do julgado.
A sentença condenatória exorta algum comportamento do vencido ou é só um documento que impõe um ônus ao exequente de pedir de novo o que ele já pediu? Vamos ter aquela velha opinião formada sobre tudo?
1 Art. 526. É lícito ao réu, antes de ser intimado para o cumprimento da sentença, comparecer em juízo e oferecer em pagamento o valor que entender devido, apresentando memória discriminada do cálculo.
2 Art. 525, § 4º Quando o executado alegar que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante da sentença, cumprir-lhe-á declarar de imediato o valor que entende correto, apresentando demonstrativo discriminado e atualizado de seu cálculo.
3 Art. 491. Na ação relativa à obrigação de pagar quantia, ainda que formulado pedido genérico, a decisão definirá desde logo a extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de juros, o termo inicial de ambos e a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso, salvo quando:
I – não for possível determinar, de modo definitivo, o montante devido;
II – a apuração do valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa, assim reconhecida na sentença.
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, seguir-se-á a apuração do valor devido por liquidação.
§ 2º O disposto no caput também se aplica quando o acórdão alterar a sentença.
4 Art. 26. Além dos elementos e requisitos gerais, a sentença de procedência do pedido deve:
I – se condenatória, ser preferencialmente líquida;
II – se condenatória, no caso de direitos individuais homogêneos, ademais das providências estabelecidas no art. 45 desta Lei, identificar, quando possível, o grupo e os requisitos para a identificação dos membros ou, na hipótese de compensação por equivalente, a forma de compensação do grupo lesado;
§ 1º Nas sentenças condenatórias à prestação pecuniária, o juiz:
I – em se tratando de danos individualmente sofridos, sempre que possível, fixará o valor da indenização individual devida a cada membro do grupo ou um valor mínimo para a reparação do dano;
II – quando o valor dos danos individuais sofridos pelos membros do grupo forem uniformes, prevalentemente uniformes ou puderem ser reduzidos a uma fórmula matemática, indicará esses
valores, a matriz de danos ou a fórmula de cálculo da indenização individual, com a possibilidade de prévia definição do prazo para respectivo pagamento a cada um dos membros do grupo;
III – facultará ao membro do grupo que divergir do valor da indenização individual ou da matriz ou da fórmula para seu cálculo, receber o valor fixado coletivamente e ajuizar ação individual de liquidação, no
prazo de um ano, contado do recebimento integral daquele valor.
§ 2º A sentença ou a decisão poderá determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que
tenham por objeto prestação pecuniária.
§ 3º. Poderá haver condenação direta do réu a custear obra, projeto ou atividade destinada a reparar lesão a direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.
§ 4º. O acordo ou a sentença deve prever a forma de execução, preferencialmente desjudicializada, inclusive, se necessário, com a constituição de fundo ou de entidade de infraestrutura específica.
§ 5º A sentença poderá determinar:
I – a alteração em estrutura institucional, pública ou privada, de natureza cultural, econômica ou social, a fim de adequar seu funcionamento aos parâmetros legais e constitucionais;
II – a adequada correção do estado de fato de violação sistemática de direitos.
Hermes Zaneti Júnior
Mestre e Doutor UFRGS. Doutor Università degli Studi di Roma Tre. Pós Doutorado na Università degli Studi di Torino. Professor Mestrado e Graduação da UFES. Promotor de Justiça – ES
Marcelo Abelha Rodrigues
Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.