O caso Neymar e o tribunal da Internet
(Artigo publicado no jornal A Tribuna, página 10, dia 10/06/19)
Ludgero Liberato*
A história da humanidade é, também, a história da evolução dos meios válidos de se chegar à verdade sobre um fato, para se permitir um julgamento. No passado, já se entendeu como método racional as chamadas Ordálias, conhecidas como Juízos de Deus, que nada mais eram do que jogos de sorte cujo resultado se pressupunha ser o da Justiça divina. Houve época ainda que a confissão obtida mediante tortura era aceita.
Hoje, evoluímos. É consenso que a prova precisa ser produzida com observância de preceitos legais, instituídos por razões éticas ou científicas, cabendo ao Judiciário o controle sobre sua validade. A condenação de alguém deve ser o resultado de um processo racional, ainda que por vezes suscetível de erros. Toda essa evolução, no entanto, não é observada nos julgamentos sumários feitos pela sociedade nos tribunais populares instituídos pelas redes sociais. O recente caso envolvendo o jogador Neymar é exemplo disso.
O Boletim de Ocorrência com a acusação vazou, mesmo sendo casos de crime sexual passíveis de sigilo da Justiça. A situação foi exposta mundialmente, deixando em perigo a reputação e a carreira do jogador. E, mesmo a denunciante, suposta vítima, teve sua vida invadida e exposta. As partes estão em meio a julgamento social, no qual não há prazos processuais, nem regras pré-definidas. Aceitam-se apenas trechos de vídeos, depoimentos sem contraditório.
Há todos os elementos de um júri: acusação, apresentação de provas, contraprovas e o julgamento, em si, feito por uma multidão passional. Tudo numa velocidade que impõe culpados e vítimas a cada minuto, capaz de destruir carreiras, expor a intimidade e exterminar reputações em um clique, em um compartilhamento.
Julgamentos sociais sempre existiram e, por isso, foram criadas regras que limitam a publicidade de determinados processos, sobretudo quando seu conteúdo diz respeito à intimidade. Todavia, o descumprimento dessas regras, com vazamento de documentos, informações e decisões, ganhou uma nova dimensão com as redes sociais, tornando os efeitos do vazamento infinitamente mais danosos.
Diante desse contexto, impõe-se repensar o problema: Quais são os mecanismos de controle para que aquilo que está na investigação criminal não chegue a conhecimento do público? Como garantir a coexistência da proteção ao investigado e o direito à publicidade e a liberdade de imprensa?
O tema é latente. Na última quarta-feira (06), a Polícia Federal fez uma operação em Minas Gerais, prendendo dois escrivães acusados de vazar informações de inquéritos policiais. Poucas semanas antes, instaurou-se um grande debate, capitaneado por ministros do Supremo Tribunal Federal, sobre vazamentos de informações sigilosas e sobre as formas de contê-los.
É necessário, portanto, debater, de forma clara, o vazamento de informações, as regras que impõem sigilo às partes e às autoridades e discutir as punições para aqueles que descumprirem esses limites, tudo sem perder de vista a necessidade de compatibilizar essa proteção com os alicerces da democracia, dentre os quais estão a liberdade de imprensa e a publicidade dos atos do Poder Público. A discussão deve ter ampla participação popular e o espaço propício para isso é o Poder Legislativo.
*Ludgero Liberato é advogado, mestre em Direito Processual