Artigo do advogado Marcelo Abelha Rodrigues publicado na Revista PUB Diálogos Interdisciplinares 14/08/2019
O título é realmente uma homenagem à belíssima música composta por Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá que ganhou o mundo na voz de Bituca, nossa lenda viva, Milton Nascimento. Não há como não ouvir sem contemplar a melodia; não há como não ouvir sem refletir na letra; não há como não ouvir a voz de Milton sem derramar lágrimas. Lágrimas que derramo ao narrar esta história.
E foi isso que também fez a nossa personagem, Maria, que, não por acaso é metáfora das Josefinas, Luzias, Jussaras, Marielles, Márcias, Fernandas, Gabrielas da nossa rua, do nosso bairro, do nosso Estado, do Brasil, do mundo.
Milhares de Marias caçam e travam em silêncio, por vergonha, medo ou ignorância, uma batalha interminável contra um inimigo invisível que, como um parasita inofensivo, usurpa-lhe, às vezes sorrateiramente, às vezes nem tanto, anos a fio, dia após dia, um pouquinho de amor próprio, do seu ego, da sua personalidade, da sua identidade.
Esta batalha nasce no octógono do tórax de Maria, tipo um… sufocamento inexplicável, uma dor interna pontiaguda inacabável que brota no peito e sai pela boca, e que rapidamente, em questão de segundos, se espalha como uma metástase para a psique, transformando os dias, as tardes e as noites em um tormento de medo, atonia, prostração, desânimo e cujo único remédio parece ser dormir para nunca mais acordar.
Doce ou atroz, manso ou feroz, caçadora de si, neste momento entra o primeiro recurso de Maria… negar que Carlos é quem ele realmente é, e encontrar na farmácia cheia de aprazolans, diazepans, flurazepans, clordiazepóxidos, estazolans, zolpidens, estazolans a solução para sua vida. Convence-se, num primeiro momento, que o defeito é dela… Mas, depois de uma semana, seja por si mesma ou pela voz sã de algum parente próximo, ela se dá conta de que obviamente ela não é o problema e que essa solução farmacêutica não resolve porque mascara o seu estado de ser, transformando-a de viva morta em morta viva, como nestes filmes de zumbis que andam cambaleantes sem saber direito a direção para onde vão.
A enxaqueca interminável não impede que Maria identifique o embrião deste problema, dessa dor no peito que sufoca e que é injustamente sintetizada em medo, insegurança, incapacidade e ansiedade. A grande verdade – e, ela já se deu conta disso – é que tudo começou no primeiro mês de namoro com o Carlos. Quantas vezes ela trancou-se no banheiro para chorar…
Se olharmos para os dois filhos lindos e o tempo que ficaram juntos, poderemos dizer que o casamento deu certo… que foram felizes até o decimo ano de convívio, precisamente até anteontem. Só que não é bem assim. Ela já perdeu a conta e nem se lembra mais quando as brigas, as opressões, as intimidações, as humilhações deixaram de ser entre quatro paredes e passaram a ser públicas, nas festinhas de família, nos lanches de domingo, na presença de amigos mais próximos, na frente dos filhos, no hall do prédio em frente de vizinhos. Só terminou mesmo, anteontem, com um empurrão que a projetou como um bólido na parede que lhe custou o trincamento do úmero, além é claro da dor da alma que não vai passar nunca. O motivo? Bem, o motivo da cólera delirante foi ela ter tirado o celular dele da mesa e colocado sobre a escrivaninha da sala. Isso mesmo. Ela sabia que isso era injusto… ele tinha que ser punido. Faltavam-lhe forças.
Mas não se iludam – e nem ela se ilude -. Olhando pra trás se recorda desde o primeiro dia de namoro quando foi apresentada à sua sogra e ele, Carlos, seu namorado de primeiro dia e então futuro marido vociferou como um felino cheio de fúria para que sua mãe calasse a boca para que ele pudesse ouvir o jogo na TV.
Sua sogra seria ela alguns dias depois…
Sem forças e sem ânimo, ainda lembrando desse horrendo episódio, deitada no sofá da casa de uma amiga, sozinha, com gesso do ombro ao polegar e cheia de dores pelo corpo todo, usou a mão direita para ligar um rádio relógio que estava numa mesinha ao lado do sofá-cama onde ela dormia desde anteontem.
Na hora que ligou o aparelho eis que o silêncio foi brindado com Milton Nascimento, dizendo nada a temer, senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo…Abrir o peito à força numa procura, fugir às armadilhas da mata escura…, longe se vai sonhando demais, mas onde se chega assim, vou descobrir o que me faz sentir, eu, caçador de mim…
A mesma música que a fez chorar naquele instante serviu-lhe de energético poderoso para levantar-se, ajeitar levemente os cabelos, passar um batom, vestir o jeans e ir, decidida, em direção à Delegacia da Mulher em seu bairro.
Sem Rivotril, mas caçadora de si, começava a se encontrar, por ela e por todas.
“Aproximadamente uma em cada quatro mulheres brasileiras com mais de 16 anos sofreu agressões nos últimos doze meses, segundo levantamento do instituto Datafolha, realizado a pedido do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e divulgado nesta terça-feira. Na pesquisa, 27,4% das entrevistadas disseram ter sofrido alguma violência. Entre as que foram violentadas, 52% não denunciaram os casos. Das que buscaram ajuda, 23,8% disseram ter procurado algum órgão especializado (em instituições como delegacias da mulher ou delegacias comuns, além de ligações para o 190). Já 15% compartilharam a situação com alguém da família ou pessoas próximas. Entre as agressões relatadas nos últimos doze meses, a maioria ocorreu em casa (42%), enquanto 29% na rua e o restante em ambientes como o trabalho, um bar/ balada ou a internet – na lista dos locais mais comuns”. (https://veja.abril.com.br/brasil/datafolha-274-das-mulheres-relatam-agressoes-metade-nao-denuncia/). 23.02.2019.